STJ proíbe o uso de gás no sacrifício de cães e gatos

em 4 November, 2009


O Observatório Eco traz a íntegra de decisão proferida pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), que proíbe a prefeitura da cidade de Belo Horizonte a utilizar gás asfixiante no centro de controle de zoonose. Para o relator Humberto Martins, da Segunda Turma, o uso desse procedimento “é medida de extrema crueldade, que implica em violação do sistema normativo de proteção dos animais, não podendo ser justificada como exercício do dever discricionário do administrador público”.

 

Segundo o acórdão, a prefeitura apresentou recurso especial ao STJ impugnando decisão do TJ-MG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais) que proibiu o uso de método cruel para o controle de animais doentes no centro de zoonose da cidade. O questionamento dessa prática surgiu em razão de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público estadual mineiro.

 

A prefeitura argumentou em seu recurso que “nos termos do art. 1.263 do CC, os animais recolhidos nas ruas – e não reclamados no Centro de Controle de Zoonose pelo dono no prazo de quarenta e oito horas -, além dos que são voluntariamente entregues na referida repartição pública, são considerados coisas abandonadas. Assim, a administração pública poderia dar-lhes a destinação que achar conveniente”.

 

A Segunda Turma negou provimento ao recurso da prefeitura, em seu voto, o relator, Humberto Martins ressaltou que “não há como se entender que seres, como cães e gatos, que possuem um sistema nervoso desenvolvido e que por isso sentem dor, que demonstram ter afeto, ou seja, que possuem vida biológica e psicológica, possam ser considerados como coisas, como objetos materiais desprovidos de sinais vitais”.

 

Ao rechaçar a prática cruel, Martins disse “a condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade do equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que os animais são dotados de uma estrutura orgânica que lhes permite sofrer e sentir dor”. “A rejeição a tais atos, aflora, na verdade, dos sentimentos de justiça, de compaixão, de piedade, que orientam o ser humano a repelir toda e qualquer forma de mal radical, evitável e sem justificativa razoável”, completou o ministro.

 

REsp 1.115.916-MG

 

Leia a íntegra da decisão

 

 

RECURSO ESPECIAL Nº 1.115.916 – MG (2009⁄0005385-2)

 

Relator: Ministro Humberto Martins

Recorrente: Município de Belo Horizonte

Recorrido: Ministério Público do Estado de São Paulo

 

EMENTA

 

ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL – CENTRO DE CONTROLE DE ZOONOSE – SACRIFÍCIO DE CÃES E GATOS VADIOS APREENDIDOS PELOS AGENTES DE ADMINISTRAÇÃO – POSSIBILIDADE QUANDO INDISPENSÁVEL À PROTEÇÃO DA SAÚDE HUMANA – VEDADA A UTILIZAÇÃO DE MEIOS CRUÉIS.

1. O pedido deve ser interpretado em consonância com a pretensão deduzida na exordial como um todo, sendo certo que o acolhimento do pedido extraído da interpretação lógico-sistemática da peça inicial não implica em julgamento extra petita.

2. A decisão nos embargos infringentes não impôs um gravame maior ao recorrente, mas apenas esclareceu e exemplificou métodos pelos quais a obrigação poderia ser cumprida, motivo pelo qual, não houve violação do princípio da vedação da reformatio in pejus.

3. A meta principal e prioritária dos centros de controles de zoonose é erradicar as doenças que podem ser transmitidas de animais a seres humanos, tais quais a raiva e a leishmaniose. Por esse motivo, medidas de controle da reprodução dos animais, seja por meio da injeção de hormônios ou de esterilização, devem ser prioritárias, até porque, nos termos do 8º Informe Técnico da Organização Mundial de Saúde, são mais eficazes no domínio de zoonoses.

4. Em situações extremas, nas quais a medida se torne imprescindível para o resguardo da saúde humana, o extermínio dos animais deve ser permitido. No entanto, nesses casos, é defeso a utilização de métodos cruéis, sob pena de violação do art. 225 da CF, do art. 3º da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, dos arts. 1º e 3º, I e VI do Decreto Federal n. 24.645 e do art. 32 da Lei n. 9.605⁄1998.

5. Não se pode aceitar que com base na discricionariedade o administrador realize práticas ilícitas. É possível até haver liberdade na escolha dos métodos a serem utilizados, caso existam meios que se equivalham dentre os menos cruéis, o que não há é a possibilidade do exercício do dever discricionário que implique em violação à finalidade legal.

6. In casu, a utilização de gás asfixiante no centro de controle de zoonose é medida de extrema crueldade, que implica em violação do sistema normativo de proteção dos animais, não podendo ser justificada como exercício do dever discricionário do administrador público.

Recurso especial improvido.

 

ACÓRDÃO

 

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça “A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques, Eliana Calmon e Castro Meira votaram com o Sr. Ministro Relator.

 

Brasília (DF), 1º de setembro de 2009(Data do Julgamento)

 

 

MINISTRO HUMBERTO MARTINS 

Relator

 

 

RECURSO ESPECIAL Nº 1.115.916 – MG (2009⁄0005385-2)

 

 

 

 

 

 

 

 

RELATÓRIO

 

 

O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):

 

Cuida-se de recurso especial interposto pelo MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE, com fundamento no artigo 105, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, assim ementado:

 

“Embargos infringentes. Sacrifício de cães e gatos vadios apreendidos pelos agentes de Administração. Possibilidade. Necessidade de controle da população de animais de rua e prevenção de zoonoses. Falta de recursos públicos para se adotar as medidas pretendidas pela Sociedade Mineira Protetora dos Animais, como a vacinação, vermifugação e esterilização dos cães e gatos vadios. Eliminação dos animais apreendidos por meio de câmara de gás. Medida cruel. Impossibilidade. 1. A falta de recursos públicos, tanto financeiros como operacionais e de pessoal, para lastrearem outras medidas de controle de zoonoses e da população de cães e gatos vadios induz a possibilidade de se sacrificar tais animais, vez que os mesmos podem ser vetores de doenças graves, como a leishmaniose visceral canina e a raiva. 2. Os animais vadios apreendidos devem ser sacrificados utilizando-se de meios que não sejam cruéis ou impliquem sofrimento aos mesmos, hipótese que afasta o abate por gás asfixiante.” (fls. 645)

 

 

No presente recurso especial, alega o recorrente, preliminarmente, ofensa ao art. 535, inciso II, do CPC, porquanto, apesar da oposição dos embargos de declaração, o Tribunal de origem não se pronunciou sobre pontos necessários ao deslinde da controvérsia.

 

Aduz, no mérito, que o acórdão estadual contrariou as disposições contidas nos artigos 1.263 do CC⁄2002, e os arts.. 2º, 126, 128, 293, 459, 460, 496, 515 e 555 do CPC.

 

Apresentadas as contrarrazões às fls. 781⁄797, sobreveio o juízo de admissibilidade positivo da instância de origem. (fls. 817⁄818)

 

É, no essencial, o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.115.916 – MG (2009⁄0005385-2)

 

EMENTA

 

ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL – CENTRO DE CONTROLE DE ZOONOSE – SACRIFÍCIO DE CÃES E GATOS VADIOS APREENDIDOS PELOS AGENTES DE ADMINISTRAÇÃO – POSSIBILIDADE QUANDO INDISPENSÁVEL À PROTEÇÃO DA SAÚDE HUMANA – VEDADA A UTILIZAÇÃO DE MEIOS CRUÉIS.

1. O pedido deve ser interpretado em consonância com a pretensão deduzida na exordial como um todo, sendo certo que o acolhimento do pedido extraído da interpretação lógico-sistemática da peça inicial não implica em julgamento extra petita.

2. A decisão nos embargos infringentes não impôs um gravame maior ao recorrente, mas apenas esclareceu e exemplificou métodos pelos quais a obrigação poderia ser cumprida, motivo pelo qual, não houve violação do princípio da vedação da reformatio in pejus.

3. A meta principal e prioritária dos centros de controles de zoonose é erradicar as doenças que podem ser transmitidas de animais a seres humanos, tais quais a raiva e a leishmaniose. Por esse motivo, medidas de controle da reprodução dos animais, seja por meio da injeção de hormônios ou de esterilização, devem ser prioritárias, até porque, nos termos do 8º Informe Técnico da Organização Mundial de Saúde, são mais eficazes no domínio de zoonoses.

4. Em situações extremas, nas quais a medida se torne imprescindível para o resguardo da saúde humana, o extermínio dos animais deve ser permitido. No entanto, nesses casos, é defeso a utilização de métodos cruéis, sob pena de violação do art. 225 da CF, do art. 3º da Declaração Universal dos Direitos dos Animais, dos arts. 1º e 3º, I e VI do Decreto Federal n. 24.645 e do art. 32 da Lei n. 9.605⁄1998.

5. Não se pode aceitar que com base na discricionariedade o administrador realize práticas ilícitas. É possível até haver liberdade na escolha dos métodos a serem utilizados, caso existam meios que se equivalham dentre os menos cruéis, o que não há é a possibilidade do exercício do dever discricionário que implique em violação à finalidade legal.

6. In casu, a utilização de gás asfixiante no centro de controle de zoonose é medida de extrema crueldade, que implica em violação do sistema normativo de proteção dos animais, não podendo ser justificada como exercício do dever discricionário do administrador público.

Recurso especial improvido.

 

VOTO

 

O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):

 

DO JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE

 

Ante a presença dos pressupostos recursais, conheço do recurso especial.

 

DA INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC

 

Inexistente a alegada violação do art. 535 do CPC, pois a prestação jurisdicional foi dada na medida da pretensão deduzida, como se depreende da análise do acórdão recorrido.

 

Na verdade, a questão não foi decidida conforme objetivava o recorrente, uma vez que foi aplicado entendimento diverso. É cediço, no STJ, que o juiz não fica obrigado a manifestar-se sobre todas as alegações das partes, nem a ater-se aos fundamentos indicados por elas ou a responder, um a um, a todos os seus argumentos, quando já encontrou motivo suficiente para fundamentar a decisão, o que de fato ocorreu.

 

Ressalte-se, ainda, que cabe ao magistrado decidir a questão de acordo com o seu livre convencimento, utilizando-se dos fatos, provas, jurisprudência, aspectos pertinentes ao tema e da legislação que entender aplicável ao caso concreto.

 

Nessa linha de raciocínio, o disposto no art. 131 do Código de Processo Civil:

 

“Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.”

 

Em suma, nos termos de jurisprudência pacífica do STJ, “o magistrado não é obrigado a responder todas as alegações das partes se já tiver encontrado motivo suficiente para fundamentar a decisão, nem é obrigado a ater-se aos fundamentos por elas indicados” (REsp 684.311⁄RS, Rel. Min. Castro Meira, DJ 18.4.2006), como ocorreu na hipótese ora em apreço.

 

Nesse sentido, ainda, os precedentes:

 

“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. MATÉRIA DECIDIDA DE FORMA CONTRÁRIA À PRETENSÃO. REVISÃO DA VERBA HONORÁRIA. SÚMULA 07⁄STJ. CONDENAÇÃO DA FAZENDA PÚBLICA. NÃO-VINCULAÇÃO AOS LIMITES PREVISTOS NO ARTIGO 20 E PARÁGRAFOS DO CPC.

1. Não viola o artigo 535 do CPC quando o julgado decide de forma clara e objetiva acerca do ponto alegado como omisso, contudo de forma contrária à pretensão do recorrente.

(…)

4. Agravo regimental não-provido.”

(AgRg no Ag 928.471⁄SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 17.12.2008.)

 

 

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO – VIOLAÇÃO AOS ARTS. 535, 515, CAPUT E § 3º, 333, II, E 126 DO CPC NÃO CARACTERIZADA – CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS E HOSPITALARES – PLANO REAL: CONVERSÃO – LEI 9.069⁄95 – TABELA DO SUS REFORMULADA EM NOVEMBRO DE 1999 – PRECEDENTES STJ.

1. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC quando os fundamentos da decisão a quo que são claros e nítidos, sem haver omissões, obscuridades, dúvidas ou contradições. O não-acatamento das teses contidas no recurso não implica cerceamento de defesa, pois ao magistrado cabe apreciar a questão de acordo com o que entender atinente à lide.

(…)

7. Recurso da União não provido.”

(REsp 851.911⁄SC, Rel. Ministra Eliana Calmon, DJe 16.12.2008.)

 

DA ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS. 126, 128, 293, 459, 460 E 555 DO CPC

 

Alega o recorrente que os pedidos formulados na petição inicial deverão ser interpretados restritivamente, cabendo, pois, ao Poder Judiciário, decidir a lide nos limites em que foi inicialmente proposta, sendo-lhe defeso proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantia superior ou em objeto diverso do que foi demandado.

 

Sustenta que o Ministério Público, quando da apelação, pleiteou de forma inegavelmente genérica, ampliando os pedidos constantes na petição inicial.

 

Não assiste razão ao recorrente.

 

Há inquestionável correlação lógica entre a causa de pedir e os pedidos formulados, e o acórdão sem dúvida deferiu o que a autora, na petição inicial, explícita ou implicitamente postulou, sendo certo que é dado ao julgador deferir pretensão que, conquanto não formulada expressamente, represente um minus em relação ao que perseguido, e exatamente por essa razão, esteja compreendida no pedido maior apresentado.

 

Ademais, não houve ampliação do pedido quando do oferecimento da apelação pelo Ministério Público. O pedido deve ser interpretado em consonância com a pretensão deduzida na exordial como um todo, sendo certo que o acolhimento do pedido extraído da interpretação lógico-sistemática da peça inicial não implica em julgamento extra petita.

 

Neste sentido:

 

“AGRAVO REGIMENTAL. SEGURO. FURTO DE VEÍCULO. AÇÃO DE COBRANÇA DE INDENIZAÇÃO C⁄C PEDIDO DE LUCROS CESSANTES. JULGAMENTO EXTRA PETITA. NÃO OCORRÊNCIA. PEDIDO EXISTENTE NO CORPO DA PETIÇÃO, EMBORA NÃO CONSTASSE DA PARTE ESPECÍFICA DOS REQUERIMENTOS. INTERPRETAÇÃO LÓGICO-SISTEMÁTICA DO PEDIDO. PRECEDENTE. COMPROVAÇÃO DOS LUCROS CESSANTES. REEXAME DE PROVA. SÚMULA 7⁄STJ.

I – O pedido é aquilo que se pretende com a instauração da demanda e se extrai a partir de uma interpretação lógico-sistemática do afirmado na petição inicial, recolhendo todos os requerimentos feitos em seu corpo, e não só aqueles constantes em capítulo especial ou sob a rubrica ‘dos pedidos’. (REsp 120299⁄ES, Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, DJ 21.9.98).

II – O pedido de lucros cessantes respalda-se na extrapolação verificada quanto ao fiel cumprimento da apólice, resultando a responsabilização da seguradora pelo atraso no cumprimento da obrigação, a justificar sua condenação.

III – Analisando os elementos fáticos da causa, concluiu o Tribunal de origem terem sido comprovados os lucros cessantes, vez que a autora deixou de exercer sua atividade profissional após a ocorrência do sinistro e, via de conseqüência, de auferir a renda correspondente. A pretensão de rever esse entendimento esbarra no óbice da Súmula 7 deste Tribunal. Agravo improvido.” (Grifei)

(AgRg no REsp 714159⁄SC, Rel. Min. Sidnei Beneti, julgado em 19.6.2008, DJe 1.7.2008.)

 

DA ALEGADA VIOLAÇÃO DOS ARTS.  2º, 496 E 515 DO CPC

 

Alega o recorrente que o acórdão, ao decretar que deve ser utilizado outro expediente para sacrificar cães e gatos vadios, como a injeção letal dentre outros que não causem dor ou sofrimento aos animais no instante da morte, acabou por violar de forma frontal e direta o princípio da proibição da reformatio in pejus, corolário do princípio dispositivo inserto nos artigos 2º, 496 e 515, todos do Código de Processo Civil.

 

Afirma que o provimento parcial da apelação foi no sentido de apenas assegurar que na hipótese em que a eliminação dos animais seja necessária, seja então adotada a medida com prévia e regular sedação, sem a indicação de injeção letal como meio para a prática do sacrifício.

 

Aqui também não assiste razão ao recorrente.

 

Basta uma simples leitura dos acórdãos para se verificar que a decisão nos embargos infringentes não impôs um gravame maior ao recorrente, mas apenas esclareceu e exemplificou métodos pelos quais a obrigação poderia ser cumprida.Vejamos:

 

Acórdão da apelação (fls.555⁄557):

 

Aliás, aquele mesmo ordenamento que autoriza o extermínio, do mesmo modo estabelece as hipóteses permissivas para o abate, especialmente ditando que o sacrifício de qualquer animal apreendido será realizado mediante aplicação endovenosa de medicamento que leva à morte rápida e sem sofrimento para o animal.

 

Portanto, ilegal, descabido, cruel e até inverossímil o ato editado pela Pasta de Saúde Municipal – Portaria nº 025⁄03 – que determinou que todos os animais que se enquadrem como de ‘origem desconhecida’ sejam apreendidos e abatidos no Centro de Controle de Zooonoses.

(…)

Somente em parte – mas relevante – merece reforma a decisão, pelo que, curvando-me com redobrada vênia do respeitável ponto de vista do douto Relator, DOU PARCIAL PROVIMENTO ao recurso, apenas para assegurar que nas hipóteses em que a eliminação dos animais seja necessária, de acordo com decisão fundada em laudo veterinário, seja então a medida adotada com prévia e regular sedação.”

 

Acórdão dos embargos infringentes (fls. 648):

 

“No que tange à forma de se abater os animais apreendidos – por utilização de gás asfixiante -, entendo que tal hipótese configura maus-tratos, como elencado no art. 3º, ‘b’, da Declaração Universal dos Direitos dos Animais e no art. 38 da Lei 9.605⁄98. Destarte, deve ser utilizado outro expediente para se sacrificar os cães e gatos vadios, como a injeção letal, dentre outros que não causarem dor ou sofrimento aos animais nos instante da morte.”

 

O comando proferido pelo Tribunal de origem, nos dois acórdãos, é bastante claro: deve o município, quando necessário, promover o sacrifício dos animais por meios não cruéis, o que afasta, desde logo, o método que vinha sendo utilizado no abate por gás asfixiante.

 

Dentre esses meios, o acórdão nos embargos infringentes apenas exemplificou a possibilidade da utilização da injeção letal, sem contudo, determinar que esta seria a única maneira que atenderia ao comando da decisão. Ao contrário, o Tribunal de origem inclusive abriu espaço para outros meios, desde que não causassem dor ou sofrimento aos animais.

 

Por esse motivo não observo a violação do princípio da vedação da reformatio in pejus.

 

DA ALEGADA VIOLAÇÃO DO ART. 1.263 – CÓDIGO CIVIL

 

Aduz o recorrente que, nos termos do art. 1.263 do CC, os animais recolhidos nas ruas – e não reclamados no Centro de Controle de Zoonose pelo dono no prazo de quarenta e oito horas -, além dos que são voluntariamente entregues na referida repartição pública, são considerados coisas abandonadas. Assim, a administração pública poderia dar-lhes a destinação que achar conveniente.

 

Não assiste razão ao recorrente, e o equívoco encontra-se em dois pontos essenciais: o primeiro está em considerar os animais como coisas, res, de modo a sofrerem o influxo da norma contida no art. 1.263 do CPC. O segundo, que é uma consequência lógica do primeiro, consiste em entender que a administração pública possui discricionariedade ilimitada para dar fim aos animais da forma como lhe convier.

 

Não há como se entender que seres, como cães e gatos, que possuem um sistema nervoso desenvolvido e que por isso sentem dor, que demonstram ter afeto, ou seja, que possuem vida biológica e psicológica, possam ser considerados como coisas, como objetos materiais desprovidos de sinais vitais.

 

Essa característica dos animais mais desenvolvidos é a principal causa da crescente conscientização da humanidade contra a prática de atividades que possam ensejar maus tratos e crueldade contra tais seres.

 

A condenação dos atos cruéis não possui origem na necessidade do equilíbrio ambiental, mas sim no reconhecimento de que os animais são dotados de uma estrutura orgânica que lhes permite sofrer e sentir dor. A rejeição a tais atos, aflora, na verdade, dos sentimentos de justiça, de compaixão, de piedade, que orientam o ser humano a repelir toda e qualquer forma de mal radical, evitável e sem justificativa razoável.

 

A consciência de que os animais devem ser protegidos e respeitados, em função de suas características naturais que os dotam de atributos muito semelhantes aos presentes na espécie humana, é completamente oposta à ideia defendida pelo recorrente, de que animais abandonados podem ser considerados coisas, motivo pelo qual, a administração pública poderia dar-lhes destinação que convier, nos termos do art. 1.263 do CPC.

 

Ademais, a tese recursal colide agressivamente não apenas contra tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Afronta, ainda, a Carta Fundamental da República Federativa do Brasil e a leis federais que regem a Nação.

 

A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, da Unesco, celebrada na Bélgica em 1978, dispõe em seu art. 3º, que:

 

“Artigo 3º 1.Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis. 2.Se for necessário matar um animal, ele deve de ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia.”

 

No mesmo sentido a Constituição Federal:

 

“Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

§ 1º – Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

(…) VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.” (Grifei)

 

No plano infraconstitucional:

 

Decreto Federal 24.645, de 10 de julho de 1934:

 

“Art. 1º – Todos os animais existentes no País são tutelados do Estado.

(…) Art. 3º – Consideram-se maus tratos:

I – praticar ato de abuso ou crueldade em qualquer animal;

(…) VI – não dar morte rápida, livre de sofrimento prolongados, a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo ou não”

Lei n. 9.605⁄1998:

 

“Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.”

 

 

Ao arrepio de toda essa legislação protetiva, é comum nos Centro de Controle de Zoonose, e o presente caso é uma prova disso, o uso de procedimentos cruéis para o extermínios de animais, tal como morte por asfixia, transformando esses centros em verdadeiros “campos de concentração”, quando deveriam ser um espaço para promoção da saúde dos animais, com programas de controle de doenças.

 

Não se pode esquecer que a meta principal e prioritária dos centros de controles de zoonose é erradicar as doenças que podem ser transmitidas dos animais aos seres humanos, tais quais a raiva, a leishmaniose etc. Esse é o objetivo a ser perseguido.

 

Sem adentrar no campo discricionário do Poder Executivo, é até duvidoso que os métodos empregado pelo recorrido sejam dotados de eficiência.

 

Muitos municípios pretendem controlar as zoonoses e a população de animais, adotando, para tal, o método da captura, seguido da eliminação de animais encontrados em vias públicas.

 

Tal prática, era o que recomendava o 6° Informe Técnico da Organização Mundial de Saúde – OMS, de 1973. Todavia, a OMS, com fulcro na aplicação desse método em vários países em desenvolvimento, concluiu por sua ineficácia, enunciando que não há prova alguma de que a eliminação de cães tenha gerado um impacto significativo na propagação de zoonoses ou na densidade das populações caninas, por ser rápida a renovação dessa população, cuja sobrevivência se sobrepõe facilmente à sua eliminação (item 9.4, p. 58, 8° Informe Técnico).

 

Por essas razões, desde a edição de seu 8° Informe Técnico de 1992, a OMS preconiza a educação da comunidade e o controle de natalidade de cães e de gatos, anunciando que todo programa de combate a zoonoses deve contemplar o controle da população canina, como elemento básico, ao lado da vigilância epidemiológica e da imunização (capítulo 9, p. 55, 8° Informe OMS).

 

Na mesma linha, recente publicação da Organizácion Panamericana De La Salud – OPAS recomenda o método de esterilização e devolução dos animais à comunidade de origem, declarando que a eliminação não só foi ineficaz para diminuir os casos de raiva, mas aumentou a incidência da doença.

 

Um estudo mais completo pode ser encontrado na obra “Zoonosis y enfermidades transmisibles comunes al hombre y a los animales“, de Pedro Acha, (pág. 370, Publicación Científica y Técnica nº 580, ORGANIZÁCION PANAMERICANA DE LA SALUD, Oficina Sanitária Panamericana, Oficina Regional de la ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD, 3º edição, 2003).

 

Segundo essa publicação, uma só cadela pode originar, direta ou indiretamente, 67.000 cães num período de seis anos, e que um cão, antes de ser eliminado, já inseminou várias fêmeas, motivos pelos quais, não é difícil deduzir que o extermínio não soluciona o problema.

 

Todavia, não desconheço que em situações extremas o extermínio dos animais seja imprescindível, como forma de se proteger a saúde humana.

 

No entanto, conforme bem entendeu a instância ordinária, nessas hipóteses deve-se utilizar métodos que amenizem ou inibam o sofrimento dos animais, ficando à cargo da administração a escolha da forma pela qual o sacrifício deverá ser efetivado.

 

Brilhante foi o acórdão recorrido quando lembrou que não se pode aceitar que com base na discricionariedade o administrador público realize práticas ilícitas.

 

A bem da verdade, há, realmente, um espaço pelo qual o administrador público possa transitar com certa liberdade. Todavia, discricionariedade não se confunde com arbitrariedade.

 

A lei, ao conceder discricionariedade ao administrador, o faz com o objetivo de que este encontre a melhor solução possível para o atendimento do interesse público. Desta forma, jamais se pode utilizar a discricionariedade administrativa para justificar a prática de atos, cuja lei, inclusive a Carta Magna, estabelece como ilícitos.

 

A conclusão que se chega ao analisar os diplomas legais transcritos acima, é que, em vez de discricionariedade, o que há é a vinculação do administrador para, em casos de necessidade extrema, sacrificar os animais por meio menos cruel. 

 

Pode até haver liberdade na escolha dos métodos a serem utilizados caso exista meios que se equivalham em termos de menor crueldade, o que não há é a possibilidade do exercício do dever discricionário que implique em violação à finalidade legal, ou seja, que se efetive através da prática de atos cruéis e de maus tratos contra os animais.

 

Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.

 

É como penso. É como voto.

 

MINISTRO HUMBERTO MARTINS

Relator

 

 

 




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