Segurança alimentar, um direito fundamental

em 29 September, 2010


A professora de direito agrário e ambiental da UNESP (Universidade Estadual Paulista), Elisabete Maniglia, define que segurança alimentar é “o direito do cidadão de se alimentar ao menos três vezes por dia e com alimentos de qualidade, dentro de um patamar financeiro a seu alcance”. Em entrevista ao Observatório Eco, avalia a importância da emenda constitucional 64, que incluiu a alimentação no rol dos direitos fundamentais. Porém, alerta que o alcance efetivo da segurança alimentar seja ainda algo distante, que depende de políticas públicas nesse sentido e de mudanças na mentalidade de setores do agronegócio obcecados pelo lucro empresarial “perverso”.

Para a especialista, a produção agrícola focada em “alimentos contaminados por agrotóxicos, defensivos agrícolas são decorrentes de um processo histórico que deve mudar”. “Acreditar numa mudança repentina é ilusão. A mudança só ocorre por pressão, reivindicação e luta”, pondera.  

Elisabete Maniglia é formada em jornalismo pela USP (Universidade de São Paulo) e em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Atualmente é professora na UNESP, em Franca. Tem experiência em direito agrário e ambiental rural, principalmente em temas como, reforma agrária, direito agrário, trabalho rural, direito empresarial rural e direitos humanos.

Recentemente publicou a obra, “As interfaces do direito agrário e dos direitos humanos e a segurança alimentar”, pela Editora da UNESP, em que defende a segurança alimentar como direito fundamental do ser humano e a necessidade de pensarmos na função social da propriedade e no exercício da atividade agrária sustentável como pilar para a diminuição da fome e da miséria.

Embora a professora reconheça que o Brasil avançou na esfera tecnológica no âmbito rural, em termos ideológicos “parou no sec. XIX”. Com relação à exploração da terra apoiada apenas no cultivo das extensas monoculturas “o futuro poderá ser temeroso principalmente quanto aos danos ambientais. A desertificação já é uma realidade, a diminuição das águas outra, as alterações climáticas que tanto afetam a agricultura estão presentes. Isto é uma pequena amostragem do que poderá vir em maior escala”, alerta. Veja a entrevista que Elisabete Maniglia concedeu ao Observatório Eco com exclusividade.  

 

Observatório Eco:  O filósofo do século XVII, John Locke, enxergava na terra não cultivada um “desperdício”, algo totalmente sem valor. Esse tipo de pensamento ainda sobrevive e é defendido por muitos? Por quê?

Elisabete Maniglia:   A terra não cultivada é um desperdício, porque este bem terra difere dos demais bens jurídicos. A terra gera alimento, que gera vida e dignidade humana, portanto, ser proprietário de terra acarreta uma responsabilidade social. O principio da função social é inerente a propriedade e esta presente na Constituição Federal no artigo 5º como direito e garantia fundamental e descrito no artigo 186 do mesmo diploma, não por acaso, mas para ser seguido.  

Observatório Eco: O que significa segurança alimentar? E quais os caminhos para que essa segurança exista no Brasil?

Elisabete Maniglia: Segurança alimentar é o direito do cidadão de se alimentar ao menos três vezes por dia e com alimentos de qualidade, dentro de um patamar financeiro a seu alcance.

Para que exista segurança alimentar no Brasil é necessário políticas públicas para tal fim incentivando a agricultura familiar dispondo de maiores recursos para a produção de alimentos, favorecendo a merenda escolar,  promovendo melhor acesso e condições para que as mulheres tenham conhecimento de uma culinária farta e diversificada por meio de cursos gratuitos.

Apoio de entidades públicas, ONGs e grupos que trabalhem com excluídos, trabalho multidisciplinar de pesquisa e extensão universitária junto a grupos de reprodução social. O programa Bolsa Família tem seu papel também na segurança alimentar de uma forma paliativa. Outros programas devem ser pensados neste sentido inclusive por movimentos sociais

Observatório Eco: Qual a relação entre segurança alimentar e a produção de alimentos com agrotóxicos, gorduras trans e os transgênicos?   A senhora avalia que no futuro o agronegócio abrirá mão deste tipo de produção?

Elisabete Maniglia: Os alimentos contaminados por agrotóxicos, defensivos agrícolas são decorrentes de um processo histórico que deve mudar. Acreditar numa mudança repentina é ilusão. A mudança só ocorre por pressão reivindicação e luta.

Este é processo contínuo de conscientização da sociedade feito por pessoas que possuam interesse no social e na qualidade de vida. Pode ser um trabalho de formiga a principio, mas que deve crescer até por uma questão de sobrevivência e cansaço da população em aceitar ser tão subjugada pelo agronegócio. Entenda-se aqui agronegócio como algo perverso, onde só o lucro interessa e as medidas são individuais, buscando o bem estar somente da empresa rural.

A mudança de mentalidade é fundamental. Algumas medidas como o boicote a alimentos transgênicos, com agrotóxicos, são atitudes que a população deve ter. Mas aí também se não houver incentivos públicos fica difícil porque o alimento orgânico é caro e complexo de ser fiscalizado. O agronegócio se for pressionado vai tender a mudar. Resta saber se o governo tem interesse neste papel, a favor da população e da segurança alimentar

Observatório Eco: Por outro lado, existe a produção do produto orgânico que se limita a ser vendida para a elite e ser exportada para Europa, de que adianta o Brasil produzir produtos de qualidade apenas para exportação e atender ao mercado elitista local? 

Elisabete Maniglia: A produção de orgânicos começa tomar vulto e a consciência de parte da população. No interior tem se mostrado um pouco maior, mas este avanço é tímido ainda.

Produtos orgânicos como o açúcar, café e suco de laranja ainda são produzidos para a venda no exterior devido seu alto custo. Pode até o agronegócio acelerar sua produção, começar sua venda interna se tiver incentivos, tipo tributário, agregação de valor e assim iniciar uma venda para a população local.

Tudo dependerá da organização de uma política agrícola que divulgue e propicie uma produção satisfatória também em preços para que a comunidade brasileira possa comprar.

Observatório Eco: Na Câmara Federal as discussões sobre produção de alimentos parece sempre perder as batalhas legislativas para a produção da monocultura. Qual o impacto dessas decisões no futuro?

Elisabete Maniglia: A vitória da elite rural nos processo legislativos a favor da monocultura é um processo histórico cultural, firmado no principio de que a terra é sinônimo de poder, e que o trinômio latifúndio, monocultura e economia de exportação, quando não trabalho escravo é o fundamento para a manutenção da riqueza dos grandes donos de terra.

Esta mentalidade revela que o Brasil avançou tecnologicamente, mas em procedimentos ideológicos parou no sec. XIX. O futuro poderá ser temeroso principalmente quanto aos danos ambientais. A desertificação já é uma realidade a diminuição das águas outra, as alterações climáticas que tanto afetam a agricultura estão presentes. Isto é uma pequena amostragem do que poderá vir em maior escala.

Observatório Eco: Qual a importância e impacto da emenda constitucional 64 que alterou o artigo 6º da Constituição Federal?  Qual a melhor forma de regulamentar esse direito para que se torne algo real efetivamente? 

Elisabete Maniglia: A emenda 64 foi o reconhecimento da segurança alimentar como um direito que pode ser postulado. O resultado é que poderá ser reivindicado o direito a alimentação por meio de ações, assim como hoje já temos ações para solicitação de remédios a fim de garantir o direito à saúde, poderá ser manifesto este direito por ação individual, coletiva e ação civil publica. O Ministério Público terá fundamental importância neste processo.

Observatório Eco: De que forma conciliar no Brasil o direito agrário com a preservação do meio ambiente?

Elisabete Maniglia: O direito agrário é fundamental para o direito ambiental principalmente, no que se tange as questões de ambiente natural.

O problema no Brasil é a disposição fundiária, é saber quem é dono, quem tem posse, para dizer quem tem responsabilidade pela manutenção ou pior destruição ambiental. Grande parte da terra do Brasil não tem identificação, o sujeito se acha dono para usar e destruir, na hora de restaurar e pagar pela destruição não tem vinculo com a terra.

O direito agrário tem papel fundamental em diversos setores de controle de produção e segurança alimentar, pena que não seja tão estudado como deveria, ou às vezes estudado como ramo do civil numa visão individualista. A atividade agrária deve ser vista na ideologia da função social e no paradigma da sustentabilidade em todos os seus setores.

Observatório Eco: Qual a sua avaliação da reforma do Código Florestal defendida pelo deputado federal Aldo Rebelo?

Elisabete Maniglia: O Código Florestal proposto é um grande retrocesso ambiental e uma bela adequação aos interesses dos grandes proprietários rurais que se beneficiarão. Mais uma vez se individualiza os lucros e socializam-se as perdas ambientais. Uma lástima.         




2 Comentarios

  1. lourdes ugarte, 13 anos atrás

    Achei esta entrevista muito importante. Segurança alimentar
    deve começarp ela educação. Vejo que as crianças na escola já tem consciencia dos alimentos saudáveis. Orientando as mães através do que aprendem na escola.
    Quanto as ações para solicitar remedio é uma guerra para conseguir. No código florestal as leis já existem basta que sejam cumpridas.
    O interesse econômico está acima da defesa do meio ambiente. Realmente é uma lástima.

  2. adalberto soares de oliveira, 13 anos atrás

    quero saber se estou alimentando direito


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